sábado, 23 de agosto de 2008

BATMAN - MOMENTO CULTURAL......

Posso dizer...que apesar de loira....esta critica faz referência ao meu comentário no dia da estréia do filme..... http://memoriasdeumaloira.blogspot.com/2008/07/novo-batman-mergulha-fundo-no-lado.html
Batman dá conta das "circunstâncias morais e éticas" da era de mentiras Por: Roberto de Sousa Causo

Ao tratar aqui do filme Batman Begins, em 13 de maio de 2006, eu já afirmava no título a sua conexão com a pulp fiction: "Novo Batman Exibe suas Raízes Pulp".

De lá para cá, pulp se tornou elemento de interlocução literária no Brasil e no exterior, como na defesa do pulp como valor literário ou de difusão da literatura junto ao público leitor, por participantes da chamada "Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira", ou pelos envolvidos com a série de antologias originais Ficção de Polpa, da Não Editora, de Porto Alegre, e suas congêneres americanas editadas por Michael Chabon (que resenhamos aqui em 28 de junho de 2008). Especificamente na ficção científica, Joe R. Lansdale organizou a antologia Retro Pulp Tales, em 2006.

É claro que o pulp como tendência ou como construção cultural sempre foi de interesse de um pequeno grupo de apreciadores, que tiveram contato direto com essa produção literária, seja nas pulp magazines ou como livros de bolso (paperbacks) de FC, detetive, guerra ou hard-boiled, como os que chegavam às bancas brasileiras semanalmente durante as décadas de 60 e 70 pelas editoras Monterrey e Cedibra. Um momento de "redescoberta" do pulp se dá, porém, em 1994 com Pulp Fiction, o filme de Quentin Tarantino que recupera o gosto pulp pela violência e pelo bizarro. Maxim Jakubowski cita Tarantino na introdução da antologia que organizou para a editora Carroll & Graff em 1996, The Mammoth Book of Pulp Fiction.

O cinema passou a resgatar mais do pulp, recorrendo até mesmo a gêneros esquecidos, como o de aventuras aéreas, no filme Capitão Sky e o Mundo de Amanhã, que resenhamos em 14 de abril de 2007 (leia aqui). M. Night Shyamalan tem empregado o pulp de maneira mais sofisticada, em Corpo Fechado (2000) e em Fim dos Dias (2008), por exemplo. Mesmo nas últimas tendências da FC e da fantasia, no mundo de língua inglesa - New Weird e New Space Opera - parece que "cada um busca, da sua própria maneira, atualizar ou reinventar esses subgêneros pulp para se alinharam mais com gostos e sensibilidades contemporâneos, enquanto ao mesmo tempo tentam capturar as qualidades que cativaram os leitores para esses subgêneros em primeiro lugar", como Dave Trusdale escreveu em "The New Nostalgia: The Classic Pulp Story Revival" ( http://www.sfsite.com/fsf/2008/dt0807.htm).

Também já tive a oportunidade de escrever nesta coluna (leia aqui), que o interesse pela pulp fiction reflete a situação internacional em que vivemos desde os ataques de 11 de setembro, aos Estados Unidos. Citando o escritor pulp Lester Dent, um dos heróis do romance The Chinatown Death Cloud Peril (2006), de Paul Malmont: "Se é uma mentira, então é real. Se é um monte de mentiras, então é pulp..." Provavelmente isso explica por que esse "retorno" e essa referência ao pulp se tornou um fenômeno internacional no final do século 20 e início do século 21. Política, econômica ou socialmente, vivemos na nova era pulp do "monte de mentiras".

Essa onda pulp estava devendo, porém, uma obra que desse conta das circunstâncias morais e éticas que a era do monte de mentiras implica. Batman: O Cavaleiro das Trevas, pode ser essa obra.

***

O filme de Christopher Nolan é centrado em um novo supervilão, o Coringa, brilhantemente interpretado pelo ator australiano Heath Ledger, há pouco falecido. Coringa começa sua carreira criminosa atacando justamente um banco da máfia - o primeiro de uma série de estabelecimentos do crime organizado que ele acossa, para em seguida se apresentar aos chefões do crime como o único que pode resolver o maior problema que os aflige Gotham - Batman.

Numa linha narrativa paralela, o promotor Harvey Dent, também muito bem interpretado pelo californiano Aaron Eckhart, apoiado pelo prefeito de Gotham (Nestor Carbonell), faz sua própria cruzada contra o crime organizado, prendendo literalmente centenas de bandidos de uma tacada só. Dent corteja uma colega, a promotora assistente Rachel Dawes (Maggie Gyllenhaal, substituindo Katie Holmes), a mulher que Bruce Wayne (Christian Bale) ama. Num jantar com Dent e Rachel, Wayne se convence da sinceridade e da importância de Dent na luta contra o crime, e passa a apóiá-lo. Enfim, temos ainda o inspetor Gordon, noutra boa interpretação de Gary Oldman, conduzindo a sua luta contra o crime com um núcleo de policiais aparentemente intocáveis e que tem acesso a Batman. De fato, ele está entre Batman e Dent, às vezes articulando os interesses de um e de outro.

Completam a galeria de personagens os assistentes de Batman/Wayne, Alfred, o fiel mordomo (Michael Caine), e o executivo-cientista das Indústrias Wayne, Lucius Fox (Morgan Freeman), além do chefão do crime, Salvatore Maroni (Eric Roberts). Gotham City ("interpretada" pela cidade de Chicago) é outra personagem central, desta vez despida dos adereços de FC vistos em imagens geradas por computador, no primeiro filme. Como resultado tanto da solidez das interpretações, quanto do naturalismo do cenário, temos uma Gotham City mais concreta e ao mesmo tempo mais arquetípica, nas linhas nuas do urbanismo monolítico de Chicaco.

Com tantas narrativas diferentes, tantos coadjuvantes ganhando espaço e profundidade para trabalhar bem, e com tanto tempo do filme dedicado à personalidade grotesca e monstruosa do Coringa, é o lado humano de Batman, Bruce Wayne, que é mais sacrificado. Alguns toques inspirados são fornecidos por Nolan, ainda assim: Wayne suturando o próprio braço, mordido por um rottweiller, ou dormindo numa reunião de negócios com o CEO chinês Lau (Chin Han), condutor de um outro subenredo, que leva o herói embuçado até Hong Kong.

A presença chinesa no filme não apenas se refere ao país-sede dos Jogos Olímpicos de 2008, ou à proeminência da China no cenário global neste princípio de século 21, como atualiza a presença oriental - como "perigo amarelo" - da pulp fiction dos anos 20 aos 40.

De qualquer forma, como resultado desse encolhimento da presença de Bruce Wayne, é a figura física de Batman que ganha destaque, e nisso Bale tem um brilho semelhante ao de David Prowse como Darth Vader, em O Império Contra Ataca (1980). E se as melhores falas do filme estão com Heath Ledger, resta a Christian Bale interpretar a angústia e ambigüidade de Batman com o corpo. Ao contrário do que poderia se supor, o personagem ganha uma dimensão central para a proposta deste segundo filme - uma qualidade arquetípica, e por isso mesmo remetendo a valores que superam a circunstância da identidade secreta. Batman é símbolo de heroísmo, de um caráter de resistência contra o crime e o mal. Dentro da sua dicotomia com o Coringa, temos que o supervilão realiza efeito semelhante, e oposto, por suas qualidades de voz e pelo que diz. É uma força do caos, da desordem, da falta de propósito, da destruição aparentemente aleatória. Isso se expressa mais fortemente nas histórias, uma diferente da outra, que ele conta sobre como adquiriu as cicatrizes gêmeas que se prolongam dos cantos de sua boca.

Se Batman e Coringa representam, numa primeira visada, absolutos opostos no espectro do heroísmo e da vilania, Harvey Dent, em sua jornada para se tornar o outro supervilão do filme, o Duas-Caras, é o ponto mediano: o homem de duplo potencial para o bem e para o mal. Sua identificação com Batman permite ao diretor lançar a mesma ambigüidade sobre o herói, sem ser obrigado a caracterizá-lo novamente (o que já foi feito em Batman Begins).

Christopher Nolan faz um jogo sutil de atribuições. Sem conhecer realmente as motivações de Batman, Dent enxerga o melhor nele. E sem conhecer de fato as motivações de Dent, Wayne enxerga o melhor no jovem promotor. Cada um, na verdade, intui o seu próprio lado escuro, e gostaria de ver atribuído a si mesmo uma face mais humana. Esse sofisticado jogo de se criar uma identidade pela projeção sobre o outro também está presente no discurso do Coringa, de que só ele, um louco, pode entender e eliminar um outro - Batman.

O herói, porém, revela a sua verdadeira natureza positiva ao não estender a mesma perspectiva ao Coringa. Se Batman é capaz de torturar o vilão para saber onde estão os reféns que ele ameaça matar a qualquer momento (Rachel entre eles), ele não é capaz de matar friamente o vilão. Conseqüências terríveis surgirão dessas articulações, e o que elas mostram é a situação moral é ética de que falei no início. A pulp fiction freqüentemente apostava em personagens superficiais, nada mais do que tipos condenados aos papéis esperados deles pelas linhas de enredo - tendência que os quadrinhos herdaram -, mas a era pulp em que vivemos exige algo mais. Justamente, o gesto de apontar para o fato de que vivemos além dos papéis esperados, que o que fazemos, especialmente em tempos de crise, é tomar decisões morais, com suas próprias conseqüências. No filme, isto fica patente na situação armada pelo Coringa, em que um navio com todos os criminosos presos por Dent é confrontado com um outro, repleto de homens, mulheres e crianças que deixam Gotham durante a onda de atos terroristas disparada pelo Coringa. Ambos os capitães têm nas mãos o detonador que fará o outro navio explodir.

O Coringa representa a face mais básica do terrorismo: o desejo de romper os laços sociais de solidariedade e de responsabilidade, com atos de violência aleatória que sugerem a incapacidade do Estado de proteger seus cidadãos. A resposta da sociedade seria abrir mão ela mesma dos laços de solidariedade e promover o seu próprio terrorismo de Estado, com a desculpa de estar combatendo o terrorismo? A certa altura Batman revela que criou um sistema que emprega os telefones celulares da população de Gotham para localizar o Coringa. O recurso é referencia clara às denúncias recentes de que, na luta contra o terrorismo islâmico, o governo americano estaria interceptando regularmente dezenas de milhares de ligações telefônicas, ferindo a privacidade dos cidadãos. Mas Wayne entrega o recurso nas mãos de Lucius Fox, para ser usado apenas uma vez e então destruído, para que não possa se tornar uma arma de controle social. Uma escolha moral.

O Cavaleiro das Trevas fecha com uma outra escolha moral, que recai sobre o próprio Batman - exatamente o tipo de atribuição que ele tentara evitar. Uma medida de auto-sacrifício, que é outra coisa que se exige, em tempos de crise. O verdadeiro herói, porém, não a exige dos outros, mas de si mesmo.

Algo que acontece com os quadrinhos, especialmente aqueles menos afeitos ao exagero visual, é um certo aconchego do leitor naquele universo de situações absurdas. Assim como a pulp fiction, muitas HQs de super-heróis (os filhos dos heróis pulp de antes) estão firmemente ancoradas num retrato do cotidiano. A necessária simplicidade dos personagens dos quadrinhos acaba lhes conferindo algo de arquetípico, de universal. Batman: O Cavaleiro das Trevas alcança efeito semelhante, com a mesma estratégia, mas sua discussão das decisões morais o coloca em outro nível. Um filme para se apreciar, e para nos fazer refletir.

Escritor e crítico, Roberto de Sousa Causo é autor do romance A Corrida do Rinoceronte.

Fale com Roberto Causo: roberto.causo@terra.com.br

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